COMO RECONHECER UM CRENTE/EVANGÉLICO?

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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

"MP tem cometido abuso de autoridade de denunciar”

 

CONJUR

7setembro2012

MIGUEL REALE JUNIOR

Por Pedro Canário e Marcos de Vasconcellos

Miguel Reale Júnior é um político. Não por ter alguma habilidade para trocar favores, por fugir de perguntas ou por ter a fala pronta para agradar. É um político na acepção administrativa da palavra, no sentido de um homem acostumado a pensar em soluções e direções.

Se é filho de um dos juristas mais importantes do país, o professor Miguel Reale, Miguel Reale Júnior não se esconde atrás do pai. É o decano da Faculdade de Direito da USP e um dos maiores estudiosos de Direito Penal no país. É livre-docente da faculdade desde 1973 e professor titular desde 1988.

Preferiu não seguir os passos de Miguel Reale, talvez o mais importante pensador e filósofo do Direito no Brasil e o coordenador dos trabalhos de elaboração do anteprojeto do Código Civil, entre 1969 e 1975. Com o bom humor que lhe é peculiar, Miguel Reale Júnior explica por que não foi para a área do pai: “Para não fazer sombra para ele. Fui muito generoso!” Reale, o pai, morreu em 2006, aos 96 anos.

Nesta segunda parte da entrevista à revista Consultor Jurídico, Reale Júnior conta de sua breve estada no Ministério da Justiça e revela por que saiu. Foi vítima de mais um processo engavetado pelo ex-procurador-Geral da República Geraldo Brindeiro. Comenta o início do julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, mas ainda antes de ver os primeiros resultados – a entrevista foi concedida no dia 21 de agosto, antes do término do voto do ministro Joaquim Barbosa, relator.

Para o advogado e professor, que foi presidente do PSDB, a defesa pecou em seu trabalho. Deveria ter levado documentos que comprovassem a inocência de seus clientes, e não apenas tentado gerar dúvidas na construção acusação. Reale também é contra o desmembramento do processo entre os que têm e os que não têm prerrogativa de foro. “Se já teve tantas pressões sobre o Supremo, imagina se não fosse? Não pode haver desmembramento porque um fato está relacionado com o outro. É um problema processual”, resolve.

Também critica o afã acusatório por que passa a sociedade brasileira atual. Acredita que o Ministério Público “abusa do direito de acusar” e faz denúncias “muito mais no interesse deles, para tumultuar na imprensa”. Uma postura “altamente contraproducente”. “O papel do Ministério Público é entrar com ações corretas”, resolve, de novo.

Leia abaixo a segunda parte da entrevista de Miguel Reale Junior:

Conjur — O senhor é um grande nome da defesa dos direitos humanos. Foi o primeiro presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos. O que acha da atual Comissão da Verdade?
Miguel Reale — Eu acho importantíssima, tem lá membros de maior relevo. Eu fui presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos por seis anos, desde a sua fundação até dezembro de 2001, pouco antes de virar ministro da Justiça. Lá foi feito um trabalho importantíssimo, em que nós analisamos cerca de 350 casos de pessoas que morreram nas mãos da polícia ou em circunstância de domínio. Os dois casos principais foram o do Lamarca e o do Marighella, em que a comissão reconheceu a responsabilidade do Estado. E lá já foram feitas várias investigações, e há elementos indicativos inclusive sobre quais foram os autores de tortura.

Conjur — Lembra de algum caso?
Miguel Reale — Por exemplo, o caso do estudante Alexandre Vanucci Lemos. Nesse caso havia testemunhas que trouxeram dados, que eram companheiros de cela ou companheiros de prisão, e que disseram: “O Alexandre foi torturado e quem estava presente era a Seção 3, composta pelos investigadores a, b, c e d.” Então, a comissão já traz alguns elementos indicativos da responsabilidade. O que importa na Comissão da Verdade é trazer os nomes à baila.

Conjur — Por quê?
Miguel Reale — Porque é fundamental que se saiba quem fez. Não precisa punir, o Supremo Tribunal Federal já disse que a Lei da Anistia não pode ser superada, nem mesmo por documentos internacionais, porque aí é uma prevalência da Justiça que foi concedida em 1979 e reafirmada na Constituição de 1988, nas disposições transitórias [ADCT]. Está lá. E, portanto, foi ratificada já em uma época que não estava o Congresso sob o domínio do regime militar. Mas é fundamental saber os nomes, porque não existe direito ao esquecimento. Existe uma necessidade de a história ser plenamente revelada.

Conjur — Mas e a responsabilidade do Estado?
Miguel Reale — O Estado reconheceu sua responsabilidade, e através de ações. Precisa ver se caso a caso, se já não ocorre a prescrição, mas houve várias ações de responsabilidade propostas e o Estado foi punido por responsabilidade civil. Mas a Comissão de Mortos e Desaparecidos já reconheceu a responsabilidade do Estado.

Conjur — E cabe aí então a questão do ressarcimento?
Miguel Reale — É. O ressarcimento já é um ressarcimento de pequena monta, não é nada excepcional o que a comissão pagava. Por volta de R$ 130 mil, isso há muitos anos, mais de 15 anos atrás. Mas o ressarcimento só poderá ocorrer evidentemente se houver uma medida judicial, uma condenação.

Conjur — O que o senhor acha da nova postura do Ministério Público, de ajuizar novas ações contra os torturadores?
Miguel Reale — Mas isso já foi rejeitado. Não vai prosperar, porque não tem cabimento. Primeiro porque já houve a anistia, já reconhecida pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Segundo, o que é crime permanente, que o Ministério Público alegou? É uma criação. Como se por acaso se não se encontrou o cadáver há 15 anos, dizer que o sequestro é permanente, que ele está preso. Aonde? Como? É uma acusação que tenta fazer um jogo muito mais teórico. “Como não apareceu é, permanente.” Mas isso é uma posição imaginária.

Conjur — É papel do Ministério Público entrar com esse tipo ação?
Miguel Reale — Não. O papel do Ministério Público é entrar com ações corretas. Às vezes ele exagera, comete abusos, que é um abuso do direito de denunciar, reconhecido até em vários Habeas Corpus e acórdãos do Supremo, dos tribunais superiores, que o Ministério Público denunciou com o abuso do poder de denunciar.

Conjur — Isso é bastante perceptível nas grandes operações.
Miguel Reale — Pois é. Grandes operações e nada. Por quê? Porque eles fizeram grandes operações que eram muito mais do interesse deles, para tumultuar na imprensa. Foi uma postura do Ministério da Justiça e da Polícia Federal, o que foi altamente contraproducente.

Conjur — Por quê?
Miguel Reale — Isso gira em torno dos grandes glosadores federais, que pegam uma interceptação e começam a fazer interpretações. Um sujeito que diz: “Olha, eu vou passar na farmácia e deixo o pacote ai na sua casa.” Aí o sujeito comprova: “Não. Eu guardei a nota desse dia, eu passei na farmácia e levei o remédio tal”. Mas aí você vê o comentário do agente federal, na transcrição da escuta: “O pacote é de dólar.” Isso não pode respaldar uma acusação. Então, muitas vezes se contentaram com interceptações telefônicas, muitas delas feitas sem a devida autorização judicial, o que anula toda a investigação.

Conjur — Vemos agora o julgamento do mensalão, o novo protagonista dos noticiários. Que comentários o senhor pode fazer sobre esse episódio?
Miguel Reale — Alguns dos advogados, brilhantes advogados, foram à prova e trouxeram elementos. Mas a maioria das defesas ficou muito mais no trabalho de desconstrução da acusação para gerar dúvida do que em trazer elementos probatórios de comprovação de inocência.

Conjur — Mas não é esse o papel do advogado, questionar a acusação?
Miguel Reale — Mas tem de trazer elementos, esse é o papel da defesa. E o que nós estamos vendo é o procurador, na sua fala e no memorial de mais de 400 páginas, e agora nos votos do ministro Joaquim Barbosa, trazendo elementos de provas, e os relacionando, fazendo uma costura. E não é porque é prova testemunhal que não é prova válida. A prova testemunhal não é uma prova menor. A maioria dos processos se decide com base em prova testemunhal, desde um atropelamento até um assassinado.

Conjur — E só com base no testemunho?
Miguel Reale — Não. A prova testemunhal deve ser corroborada com elementos, laudos do Banco Central, laudos do Tribunal de Contas da União, quebra de sigilos bancários. Existem elementos comprobatórios. Mas pelo que eu senti da defesa, foi muito mais no sentido de desconstruir a acusação do que trazer elementos comprobatórios de inocência.

Conjur — Para gerar dúvidas...
Miguel Reale — A finalidade era gerar dúvidas, não gerar convicção. Eu não estou criticando os meus caríssimos colegas, estou dizendo que não sei se eles tinham elementos. Provavelmente existiam elementos que pudessem fazer isso, como os elementos que o Luciano Feldens tinha com relação ao Duda Mendonça. Ele tinha documentos.

Conjur — E a questão da validade das provas colhidas em CPI?
Miguel Reale — Na verdade, tem e não tem o contraditório na CPI. Primeiro, se as provas são colhidas na CPI e são corroboradas por outros elementos, não dá mais para questionar a validade. Segundo, as provas da CPI não são provas produzidas em uma delegacia de polícia, são depoimentos prestados não só na presença do advogado, mas dos deputados da base governista, que estavam lá para fazer pergunta, ao contrário dos advogados. Existia de qualquer forma um contraditório.

Conjur —Então deixa de ser um inquérito?
Miguel Reale — É um inquérito, mas essas provas, os depoimentos, eram abertas para a imprensa em geral, e tinha participação de todos os deputados de todos os partidos. Que podiam inclusive ir a um advogado com perguntas para fazer. Ou seja, todos os partidos, deputados, eram livres para fazer pergunta. O relator era do partido da base. Então não é uma prova do inquérito policial de porta fechada.

Conjur — Saindo um pouco do mérito da acusação, é papel do Supremo Tribunal Federal julgar uma ação penal originária?
Miguel Reale — Se já teve tantas pressões sobre o Supremo... Imagina se não fosse?

Conjur — A pressão política seria maior?
Miguel Reale — E pode ser tanto para condenar como para absolver. Pode haver também pressão política do poder atual para condenar. O foro por prerrogativa de função, que a sociedade erroneamente chama de foro privilegiado, é uma garantia da sociedade, não é um beneficio. Até porque não tem recurso. E há a garantia do réu também. Um prefeito que está sendo processado na sua cidade perante o juiz, e tem um inimigo político forte, por exemplo. Vai recair pressão sobre o juiz contra ele. Agora, se ele é julgado pelo Tribunal de Justiça... Como é que o juiz da cidade vai julgar o prefeito por um crime?

Conjur — Então o desmembramento seria politicamente pior?
Miguel Reale — Mas aí não pode haver o desmembramento, porque um fato está relacionado com outro. Aí é um problema processual.

Conjur — Mas ali estão sendo julgados os fatos ou as pessoas?
Miguel Reale — As duas coisas. Isso é indissolúvel, os fatos são praticados pelas pessoas. Essa discussão me parece bizantina. Vai ler o voto inteiro, ou por capítulos, de cada um? Os fatos têm relação, mas ao mesmo tempo têm suas fortes individualidades e especificidades. Então, não pode deixar de ser por capítulos. Como é que vai votar? Não dá para votar em todo mundo, julgar os fatos do José Dirceu para condenar o João Paulo. Não.

Conjur — E como o senhor avalia o nosso sistema prisional atual?
Miguel Reale — O sistema prisional tem uma falha. Qualquer encanador sabe disso: se você tem um cano de muitas polegadas e depois tem um cano de poucas polegadas, o que acontece? Então, é um sistema de prisão de regime fechado muito grande e um sistema semi aberto mínimo. Como é que vai fazer a progressão? Precisa de uma revisão disso.

Conjur — Parece óbvio, mas qual a solução?
Miguel Reale — Eu criei e tentei implantar os presídios para os regimes semiabertos, e inclusive vários estados se prontificaram a fazer e depois deixaram o projeto. O presídio de regime fechado tem prazo para construção, licitação de empresa etc. O semiaberto é muito mais barato, tudo é mais barato. A começar pela muralha, porque não tem muralha. O que custa caro em um presídio fechado? É a muralha. Você faz a muralha, mas precisa afundá-la muito para não ter túnel e para que não derrubem. O que custa caro é o concreto que vai para baixo.

Conjur — Qual é o papel do governo federal nisso?
Miguel Reale — Aí entra todo o papel da Secretaria Nacional de Justiça e a Secretaria Nacional de Segurança, que é fixar uma política inclusive de incentivar e fornecer meios. E através também do fundo penitenciário, dar numerários e receitas para os estados construírem. O governo federal tem que fixar a política penitenciária. Isso é papel do Ministério da Justiça.

Conjur — E tem cumprido?
Miguel Reale — Não tenho acompanhado de perto, mas também não soube mais de nada.

Conjur — Quanto tempo o senhor foi ministro?
Miguel Reale — Pouco tempo, três meses. Até quando ocorreu, infelizmente, o episódio do Espírito Santo.

Conjur — Que episódio?
Miguel Reale — Houve um requerimento da Ordem dos Advogados e depois foi decretada intervenção do governo federal no Espírito Santo, por conta de juízes, promotores e advogados estarem sendo mortos pelo crime organizado que dominava o estado. E o presidente da Assembleia Legislativa, que agora eu não lembro o nome, era ligadíssimo ao crime organizado, que era aScuderie Le Cocq, o crime organizado no Rio de Janeiro. Eram os homens de ouro do esquadrão da morte no Rio de Janeiro, da polícia. Os próprios policiais ou ex-policiais do crime organizado foram se sediar no Espírito Santo, onde eles tomaram conta da infraestrutura do estado.

Conjur — E aí houve o pedido de intervenção?
Miguel Reale — Isso, houve um pedido de intervenção federal. Isso veio para o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, e o Conselho mandou um grupo de investigação, inclusive presidido pelo Paulo Sérgio Pinheiro, e integrado pelo pelos advogados Luís Roberto Barroso e Flávia Piovesan. Foram ao Espírito Santo e fizeram um levantamento, com toda segurança, e concluíram pela absoluta necessidade e conveniência da intervenção federal.

Conjur — Aí é que o senhor, como ministro, entrou...
Miguel Reale — Era ano eleitoral, e eu fui ao presidente da República, que era o Fernando Henrique Cardoso, e perguntei a ele se ele concordava que houvesse a intervenção federal nos termos que eu estava pensando. A Constituição Federal permite que exista a Intervenção Federal decretada pelo Supremo Tribunal Federal quando é para Defesa de Direitos Humanos, mediante representação do Procurador Geral da República.

Conjur — Para evitar desgaste do presidente em ano eleitoral.
Miguel Reale — Exatamente. O presidente concordou e eu toquei em frente. Mas antes disso chamamos para conversar, em uma reunião com os membros do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, o procurador-Geral da República, que era o Geraldo Brindeiro. E ele concordou em fazer a representação ao Supremo.

Conjur — O tal do engavetador-geral da República?
Miguel Reale — Isso, o apelido que eu consagrei. Aí o que aconteceu? A matéria foi aprovada por unanimidade com palmas, inclusive do próprio Brindeiro, depois da reunião. Isso era uma quinta-feira. Então, fui ao procurador com os autos para ele aprovar que houvesse uma representação ao Supremo, propondo que decretasse a intervenção.

Conjur — E o Supremo aprovou?
Miguel Reale — Na segunda-feira eu estava em São Paulo, para embarcar para a Costa Rica, onde eu assinaria um convênio para o estabelecimento do Ilanud, o Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente. Eu tinha passado a tarde no Palácio dos Bandeirantes, lavrando convênios com o governador do estado, o Geraldo Alckmin, quando eu tomei ciência de que falavam na televisão: o procurador-Geral da República, de dentro do Palácio do Planalto, dizendo o seguinte: “Acabei de estar com o presidente da República, que me autorizou a dar essa entrevista, dizendo que a intervenção federal no Espírito Santo era uma questão do ministro da Justiça, e não do governo.

Conjur — Esperou o senhor sair de Brasília, para ir a público.
Miguel Reale — Em uma questão séria, tão séria que todos os organismos internacionais de direitos humanos elogiavam o Brasil por ter decretado essa intervenção... Eu me senti absolutamente desprestigiado pelo presidente, a quem eu tenho uma admiração muito grande como político e como intelectual, e hoje tenho boas relações. Mas naquele instante era impraticável eu permanecer no Ministério. Ou eu tinha honra ou não tinha.

Conjur — E aí o senhor saiu?
Miguel Reale — Eu renunciei. O presidente podia ter me ligado, como ligava diversas vezes, tínhamos inclusive relações de proximidade, e falar: “Olha, o procurador da República veio aqui agora etc” Por que o procurador da República foi lá convencer o presidente disso? Porque era o vício dele de ser engavetador. Foi compulsivo!

Conjur — Mas o senhor não consegue imaginar nenhum motivo para ele ter engavetado essa?
Miguel Reale — Não consigo. Acho que ele não pôde evitar, foi a compulsividade.

Conjur — E como ficou o Espírito Santo?
Miguel Reale — Diante disso, o presidente constituiu uma Comissão Especial de Auxílio, mandou membros do Ministério Público lá, tentaram dar efetivamente uma espécie de investigação, de reflexão de algumas das atitudes. Mas esse episódio comprometeu tanto, que logo em seguida o juiz da execução, que era um homem que trabalhou tanto contra o crime organizado, foi assassinado. E logo em seguida teve a eleição do novo governador, que foi sucessor do Zé Inácio [José Ignácio Ferreira].

Conjur — Foi no governo dele toda essa história do senhor com o Brindeiro?
Miguel Reale — Isso. Eu tinha boas relações com o Zé Inácio. É advogado, foi presidente da Ordem do Espírito Santo, tal e tal. Mas ele gostava de fazer aproximação de amizades. No governo dele o crime organizado tomou conta do Espírito Santo. Daí veio um novo governador e começou a acertar um pouco as coisas. Mas até hoje há uma força muito significativa do crime organizado no Espírito Santo. E a intervenção federal, que intervinha no Executivo e no Legislativo, era uma Espada de Dâmocles no processo eleitoral, ao mesmo tempo em que era um grande exemplo.

Conjur — O senhor consegue traçar um paralelo da política de segurança daquela época e hoje?
Miguel Reale — Olha, eu traçaria o seguinte paralelo: alguns aspectos não tiveram continuidade, especialmente o problema todo de uma política de segurança voltada para o aprimoramento efetivo das forças policiais. Porque a Força Nacional de Segurança é composta por policiais de vários estados, muitos deles já com idade, que se inscrevem para ser da força nacional. Não existe uma força nacional como um conjunto uniforme treinado com o mesmo armamento, com o mesmo conhecimento entre seus partícipes.

Conjur — Essa falta de continuidade aconteceu por causa de um processo político, de troca de governo, ou de abandono?
Miguel Reale — De abandono. Houve opções diferentes do ministro da Justiça. Ficaram preocupados com a Polícia Federal, com a apuração de fatos, mas o que é importante deixaram. Não há uma política de segurança e não há uma política penitenciária. Política nacional de Justiça também não tem. As funções que cabem ao Ministério da Justiça cumprir, essas funções do cotidiano, de política institucional ficaram abandonadas.

Conjur — Professor, o seu pai foi um grande civilista, o pai do Código Civil. Já o senhor é um grande penalista...
Miguel Reale — Na verdade ele foi um homem que trabalhou em diversas áreas do direito, como acadêmico, teórico. Ele foi um grande filósofo, que tem uma teoria de compreensão do direito extremamente importante, no sentido da explicação do fenômeno jurídico e da criação do fenômeno jurídico, que é a teoria tridimensional do direito. Mas foi um homem também do direito positivo, como advogado, como autor.

Conjur — Em que áreas?
Miguel Reale — Ele é um dos autores mais importantes no campo do direito administrativo, e no campo do direito comercial ele tem trabalhos relevantes. No campo da história do direito também. Ele fez um livro chamado Os Quadrantes do Direito Positivo e outro chamado Horizontes no Direito da História. E ao mesmo tempo no campo do direito civil ele era um parecerista e ao mesmo tempo foi o relator e o grande autor do Código Civil. Então, ele foi, sem dúvida nenhuma, um exemplo de seriedade cientifica, de sensibilidade humana, expressa em um dos seus livros, de poesia.

Conjur — O seu pai influencia na sua carreira?
Miguel Reale — A influência foi e é muito grande, até na visão do Direito, na compreensão da dignidade do Direito e da pessoa, na compreensão das diversas vertentes que compõem o ser humano em suas contingencias. Eu acho que ele teve uma importância muito grande na minha formação.

Conjur — Até hoje a presença dele é muito marcante no Direito Civil.
Miguel Reale — Sem dúvida nenhuma. Em diversos campos, seja dos princípios norteadores da legislação civil, na parte relativa ao direito das obrigações, por exemplo. Ele deixou ensinamentos muito importantes, de princípios que ele trouxe para o nosso Código Civil, como a função social do contrato, o princípio da boa-fé objetiva. Foram novos horizontes que ele trouxe para o campo do direito civil, e hoje têm sido cada vez mais reconhecidas as virtudes do Código Civil. Então, realmente ele teve uma importância significativa. Tentamos perpetuar essa memória com estudos sobre Miguel Reale, e creio que ele teve uma influência muito grande sobre a minha formação. Evidentemente eu fui para o campo do direito penal.

Conjur — Foi para evitar ler o próprio pai nos estudos, professor?
Miguel Reale — Para não fazer sombra para ele. Fui muito generoso!

Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.

Marcos de Vasconcellos é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 7 de setembro de 2012

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