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Incoerência
cessacionista
Dr. Fábio Blanco
Você crê que os dons espirituais ainda existem na
Igreja? Saiba, porém, que há teólogos que não acreditam assim. O que eles
entendem é que, principalmente, os dons sobrenaturais não são mais
distribuídos, pelo Espírito Santo, aos crentes. Por isso, esses teólogos são
chamados de cessacionistas e a teologia que eles defendem é conhecida por
cessacionismo.
Boa parte desses cessacionistas são calvinistas, que
são os teólogos pertencentes à Igreja Presbiteriana. Os calvinistas são
conhecidos por defenderem o princípio da Sola Scriptura, que é aquela doutrina
que ensina que as verdades referentes ao cristianismo apenas podem ser
extraídas da Bíblia. Por isso a expressão, que significa “apenas as
Escrituras”.
Ora, de teólogos que defendem que a Bíblia é a única
fonte confiável para conhecermos as verdades da fé, o mínimo que se espera é
que seus ensinamentos sejam baseados única e exclusivamente na Palavra de Deus.
Porém, o que vamos observar é que no caso de decidir
se os dons sobrenaturais ainda existem na Igreja, esses teólogos se baseiam
muito mais em suas próprias formas de ver as coisas do que no que está escrito
na Palavra de Deus.
Dito de uma maneira bem simples, podemos afirmar que
os cessacionistas ensinam que aqueles dons sobrenaturais listados pelos
apóstolo Paulo em I Coríntios 12 não são mais distribuídos, pelo Espírito
Santo, aos crentes, porque esses dons eram apenas importantes para aquele
momento histórico, não mais para hoje. Isso porque, segundo esses teólogos, os
dons sobrenaturais tinham a função de autenticar a mensagem do Novo Testamento,
mostrando para as pessoas o poder de Deus por meio deles. O que esses
doutrinadores querem dizer é que os dons sobrenaturais serviam como uma forma
de Deus provar que a palavra que estava sendo pregada pelos apóstolos era
verdadeira.
A conclusão óbvia desse raciocínio é que se os dons
sobrenaturais serviam apenas para autenticar a mensagem do Novo Testamento, e
se este já está fechado em seu cânone, então aqueles dons não são mais
necessários para a Igreja.
O problema desse raciocínio é que não há, em toda a
Bíblia, qualquer passagem que afirme que os dons serviam para autenticar a
mensagem pregada pelos apóstolos. De forma bem diferente, em I Coríntios 14.12
está escrito que, em relação aos dons, os crentes devem “abundar neles, para
edificação da igreja”.
É importante observar que, nessa passagem, Paulo está
pregando para uma igreja gentia, localizada fora do ambiente judaico e distante
dos apóstolos. Por isso, quando ele fala dos dons, é óbvio que não pode estar
se referindo a algo ligado à pregação apostólica, mas a algo ligado ao
dia-a-dia da própria Igreja. O texto de Coríntios não faz relação alguma entre
os dons e a mensagem apostólica, nem deixa sequer subentendido que eles existem
para autenticar a pregação da revelação do Novo Testamento.
Então, como os cessacionistas chegam à conclusão de
que os dons sobrenaturais não são para a Igreja de hoje?
É nesse ponto que enxergo a incoerência deles, pois,
ao mesmo tempo que, sendo calvinistas, eles têm como uma de suas maiores
bandeiras a exclusividade da Bíblia como fonte de doutrina, nesse caso
específico do cessacionismo, a principal razão para eles não crerem que os dons
espirituais ainda existem na Igreja não são as Escrituras, mas algo muito mais
subjetivo: a própria experiência deles.
O pastor presbiteriano Misael Nascimento, por exemplo,
em seu artigo Porque sou cessacionista, já, logo de início, confessa que seu
texto não é resultado “de cogitações teóricas de gabinete, mas de prática
pastoral”. Isso quer dizer que sua negação à atualidade da existência dos dons sobrenaturais
está baseada mais em sua própria experiência do que em um raciocínio
fundamentado nas Escrituras.
O problema é que se for para seguir esse método
escolhido por ele, o que impediria qualquer pessoa de, também com base em sua
própria experiência, chegar à conclusão do contrário, ou seja, de que os dons
permanecem, sim, no meio da Igreja? Se alguém pode se filiar à convicção do
pastor Misael, que é cessacionista, baseando-se tão somente em sua experiência
pastoral, da mesma maneira pode aceitar a conviccão do pastor Jack Deere, autor
do livro “Surpreendido pela voz de Deus”, que crê, também sustentado por sua
experiência pastoral, que os dons permenecem, sim, sendo distribuídos aos
crentes, no cotidiano da Igreja.
O que eu quero dizer é que, com base nas experiências
pessoais, é possível chegar a todo tipo de conclusão. Só que isso torna a
doutrina cristã muito incerta. Se cada pessoa criar doutrinas baseadas em suas
próprias experiências, imagine quantas teologias existirão por aí!
O mais irônico disso tudo é que são eles, os
calvinistas cessacionistas, os que mais defendem uma teologia rígida,
fundamentada em uma interpretação restrita da Bíblia. Esses mesmos, que no caso
dos dons sobrenaturais, concluem pela sua não existência na igreja de hoje, alicerçados
não na Palavra, mas naquilo que eles próprios dizem observar.
O próprio pastor Misael, para justificar a doutrina
que defende, faz uso de tudo: de documentos presbiterianos, como a Confissão de
Westminster e decisões conciliares e até da experiência prática de outros
ministros de sua denominação. Na verdade, do que ele menos faz uso, neste caso,
é da Bíblia, o que não combina muito com a tradição calvinista.
Essa postura que observei no pastor Misael poderia ser
apenas uma exceção se eu também não a tivesse observado em outro grande nome da
Igreja Presbiteriana brasileira, que é o pastor Augustus Nicodemus. Este,
através de uma entrevista fictícia sobre o tema do cessacionismo,
justifica sua convicção de que os dons sobrenaturais não são para a Igreja da
atualidade com base muito mais em suas interpretações teológicas livres, do que
naquilo que está escrito na Palavra de Deus.
Em síntese, o pastor afirma que alguns dons
espirituais cessaram de ser distribuídos, pelo Espírito Santo, porque eles
serviram para atender aos própositos de Deus somente para aquela época da
pregação dos apóstolos. Para justificar essa ideia, afirma que Deus age de
maneiras diferentes em tempos diferentes.
Para falar a verdade, é surpeendente tal afirmação do
pastor presbiteriano. Os calvinistas são conhecidos por defenderem que toda
doutrina deve ser extraída da Bíblia, por meio de uma interpretação objetiva e
literal de seus textos. Porém, o que faz o reverendo nesse caso? Defende uma
doutrina fundamentada em uma interpretação meramente especulativa.
A Bíblia não afirma, em nenhum lugar, que os dons
sobrenaturais ficaram restritos ao período apostólico. Quando o pastor Augustus
diz que aqueles dons não são para hoje, não é de algum texto específico que ele
tira essa conclusão, mas de um processo lógico, que parte de uma premissa bem
duvidosa: a de que os dons existiam meramente para autenticar a mensagem dos apóstolos.
De uma falsa premissa se extrai, obviamente, uma falsa
conclusão. E a premissa que sustenta a tese do pastor Augustus se não é falsa à
primeira vista, no mínimo não possui nenhuma base bíblica.
O reverendo calvinista, sem meias palavras, afirma que
os dons de cura, de milagres, de profecia e até de línguas estão relacionados
somente com aquele período. Mas seu argumento não se baseia em algum texto
específico, e sim no fato de não haver nenhum trecho do Novo Testamento que
narre o uso de algum desses dons por alguém que não fosse apóstolo.
Portanto, entre a lista, clara e objetiva, de dons
apresentada por Paulo, dirigida à igreja de Corinto, e o fato irrelevante de
que a Bíblia não narra o uso de nenhum desses dons por alguém que não era
apóstolo, o pastor Augustus abre mão da certeza da primeira para se abraçar à
fragilidade da segunda.
A pergunta que deveria ser feita tanto ao pastor
Augustus, como ao pastor Misael, é: mas o que fazemos com o texto de I
Coríntios 12 sobre os dons? Ali Paulo faz uma lista deles sem qualquer
ressalva. Pelo contrário, o apóstolo se dirige à igreja de Corinto, formada por
cidadãos gentios, que nada tinham a ver com os apóstolos. O pior é que era uma
igreja problemática, que se confundia no uso desses dons. Como defender, então,
que esses dons serviam para a autenticação da pregação apostólica se, além de
não serem manifestados diretamente na vida dos apóstolos, ainda causavam,
algumas vezes, confusão no seio da comunidade?
Considerando que muitos presbiterianos não aceitam a
continuidade dos dons baseados tão somente em suas experiências pessoais, se
Paulo fosse um calvinista, a solução que talvez ele desse para esse problema da
igreja de Corinto fosse a ordem para pararem de usar esses dons; como, porém,
obviamente, ele não era, mesmo com as dificuldades enfrentadas pela Igreja, seu
conselho foi: “procurai com zelo os melhores dons…”
Há outros pontos que eu poderia levantar aqui em
oposição à ideia cessacionista, como, por exemplo, a mudança do significado dos
termos relativos aos dons para que eles possam ser aceitos ainda hoje na igreja
tradicional ou ainda a confusão que muitos deles fazem entre o que é a
revelação bíblica e o que é revelação de fatos específicos. Porém, deixo estes
pontos para serem desenvolvidos em outros artigos.
Por ora, me parece evidente que, seja pelas conclusões
extraídas de meras experiências pessoais, como as do pastor Misael, seja pela
preferência por uma doutrina baseada em hipóteses, em detrimento do texto puro
e simples da Palavra de Deus, como faz o pastor Augustus, ambos, sendo
presbiterianos, neste caso não honram o melhor da tradição calvinista, que é a
de colocar as Escrituras acima de tudo.
Fonte: Fábio Blanco
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