“Bulício no Teatro Político Brasileiro”.
Política e Economia entrelaçadas. Recessão causada pelos desmandos políticos partidários de governos corruptos e inconsequentes. Crise política atravancando a economia. Jogos de poder no toma-lá-dá-cá ganancioso, pernicioso, egoísta, hipócrita, de fazer inveja às dançarinas cortesãs do grande Teatro de Variedades de Montmartre na capital francesa, o único ambiente que regurgitava de brilho e rebuliço na liberdade das liberalidades após o rastro de miséria e dor deixado pela Primeira Grande Guerra Mundial.
O tempo contava contra o reinado daquelas dançarinas valorizadas por sua jovialidade, beleza, sensualidade e poder de sedução. Usufruíam do conforto e do luxo que o status de estrelas, sedutoras meretrizes, lhes oferecia, naquela Sociedade pós-guerra tão marcada pelas fragilidades da existência que teimavam em ignorar, ansiosas pelo prazer de viver intensamente as ilusões, quebrando tabus e preconceitos nos valores do que se considerava à época, normal e respeitável. A desilusão batia às portas por volta dos 40 anos de idade, quando, consideradas já envelhecidas para o mister, sentindo o peso da gravidade no próprio corpo, objeto de seu trabalho então rejeitado, eram relegadas a cuidar das bailarinas mais jovens e da faxina do teatro, enquanto morriam de fome, sem atenção e por desprezo, descobrindo a duras penas, a terrível relação entre mentiras e ilusões, verdades e desilusões.
Observo o bulício no palco do cenário político brasileiro entre cifras vultosas de propinas distribuídas a partidos políticos, a políticos sem o menor escrúpulo que, inclusive, não se pejam de receber ‘mesadas’ desviadas das Empresas Públicas.
Gostaria de sondar o que pensam os atores, homens e mulheres, quer sejam políticos, quer exerçam cargos públicos ou quer sejam funcionários de carreira ou ‘indicados’ pelos políticos para exercerem cargos em Estatais que, em conluio com uma certa casta de empresários, empreiteiros muito ricos e bem-sucedidos em seus negócios, porém, insaciáveis na ambição por dinheiro e poder, não hesitam em afanar da ‘coisa pública’ para acumular riquezas em suas contas privadas.
Se vivo fosse, o Escritor baiano, Jorge Amado (1912-2001), rir-se-ia da ingenuidade por ele anotada em seu Livro “Dona Flor e Seus Dois Maridos”/1966, no qual descreve com humor e ironia, uma bela crônica de costumes, retratando, inventivamente, as ambiguidades que assinalam o comportamento em Terras brasileiras, quando diz: –“ele tentando afanar o dinheiro de Dona Flor, ela resistindo, era o dinheiro das despesas”-, até porque, na ganância dos ditos atores políticos e empreiteiros, entre insistências para ‘receber’ o montante, supostamente devido, e, ‘ameaças’ pelo não recebimento, nenhuma ingenuidade, hesitação ou dúvida de consciência podem ser alegadas.
Ausculto e faço inquirições sobre “delações” de ‘amigos’ agora ‘inimigos’ ferrenhos, comparsas e cúmplices, agora detratores, tentando ‘limpar’ a própria barra ou diminuir o teor de suas culpas e punibilidades, abatendo o crédito ou depreciando algum mérito que ainda poderia restar aos seus comparticipes. Honra em desonra.
Neste burburinho tumultuado quão assustador no teatro político do Brasil atual, ouvindo e lendo o noticiário diário, sentindo pudor e vergonha alheia, espreitando as caras, os trejeitos e as desculpas e justificativas dos implicados nas tramas urdidas e aviltantes contra a Nação, reflexiono, tentando levantar o véu que esconde na criatura humana sua “persona” e sua “sombra”na inocência de justificar o injustificável comportamento iníquo dos malfeitos.
Penso no sofrimento do jovem Marcos, 40 anos, desempregado, pai de dois filhos lindos em idade escolar. Sentindo fortes dores no peito, sem condições de manter um plano de saúde, procurou atendimento na rede Pública Hospitalar. As dores aumentavam à medida que o tempo passava até que, sem nenhum socorro médico, desabou no chão frio da emergência vitimado por uma parada cardíaca sucedida por outras duas paradas às quais seguiu-se o estado comatoso. Não haviam especialistas no local, não haviam sequer medicamentos para o quadro. Decidiram-se por transferi-lo, porém, não havia vaga em nenhum hospital público. Após longo tempo de intensa e fraterna mobilização de familiares e amigos, o paciente foi, finalmente, transferido e encontra-se entre a vida e a morte, respirando por aparelhos.
Marcos representa todo brasileiro que não participou dos conchavos políticos, não corrompeu ou foi corrompido pelo sistema político partidário. Marcos é mais uma vítima da hipocrisia, das mentiras, da ganância, da corrupção, das ilusões e do despudor alheio.
Em geral, nossa visão abarca a superfície dos acontecimentos, dos Seres e das coisas, mas, para se obter uma visão aprofundada de tudo é necessário deter o olhar e desenvolver “olhos de ver e ouvidos de ouvir” como ensinou o Mestre dos Mestres, Jesus, em nome de quem, entre hipocrisias e heresias, aqueles citados usurpadores da fé pública, dizendo-se ‘Cristãos’, adquirem, por meio de fraudes, suas riquezas e, alcançam as cumeadas do poder por meio de mentiras e artifícios, arrojando-se a direitos que não detêm em detrimento do cumprimento do Dever Moral que, solenemente, ignoram.
Cristãmente, encontrei no pensamento psicanalítico de Carl Gustav Jung (1875-1961), os principais conceitos, dentre os quais destaco, “persona” e “sombra” como ‘modelos’ ou ‘arquétipos’ que funcionam como uma espécie de matriz do comportamento humano. “Persona” – é palavra grega, que representava originalmente, a máscara usada pelos atores para compor determinada personagem numa peça. E a “sombra” é o arquétipo que maior influência exerce sobre o ‘ego’, e que se desenvolve em oposição à “persona”.
A “persona” funciona como a roupagem do ‘ego’. Representando a ‘máscara’, o arquétipo da “persona” diz respeito principalmente ao que é esperado socialmente de uma pessoa e à maneira como ela acredita que deva parecer ser. É como um compromisso que se estabelece entre o indivíduo e a sociedade. Observando a postura das personagens ora em análise, suas falas, suas condutas, temperamentos e emoções, como vivem política e socialmente, fácil é perceber que o exterior diz muito do seu interior, afinal, posição social e poder político, cargos públicos, trajes, trejeitos e palavras são máscaras com as quais se procuram esconder a realidade assim como as roupas encobrem a intimidade.
Se a “persona” e o “ego” entrelaçados revestem nossas personalidades, triste considerar que, na cena política brasileira, tais ‘vestimentas’ – ‘persona’ e ‘ego’-, foram tecidas na desonra, na indignidade, na improbidade e no descaso do Dever Moral.
A renomada analista Junguiana brasileira, Dra. Nise da Silveira (1905-1999), exemplificando a identificação do “ego” com a “persona”, lembra o Conto “O Espelho” de Machado de Assis, no qual o escritor teoriza que o homem possui duas almas – uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro -, assim, Machado narra o caso de um jovem que, ao ser nomeado alferes da Guarda Nacional, identificou-se de tal maneira com sua patente que o militar eliminou o homem. Certo dia, vendo-se obrigado a permanecer sozinho em uma casa de campo onde não havia sequer uma pessoa para prestar-lhe as devidas honrarias, o alferes sentiu-se completamente vazio. Até sua imagem no espelho tornou-se enfumaçada e sem contorno. Isso o levou ao pânico. Desesperado, o alferes lembrou-se de vestir a farda. “O vidro, então, reproduziu a figura integral, nenhuma linha menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes que achava, enfim, a alma exterior”.
A “persona” pode encobrir a verdadeira natureza e esconder as características que não são aceitas e às quais se tende a rejeitar. Isto se torna um problema quando a máscara estiver compensando as deficiências pessoais e funcionando de modo a criar uma falsa imagem de si mesmo.
No teatro da existência, ao escolher sua ‘máscara’ ou ‘persona’, o ator sempre realiza uma escolha pessoal, e tudo o que se faz voltado para o exterior refere-se ao arquétipo da “persona”, desde a forma de se vestir até a postura corporal. Porém, é a criatividade que dá a marca registrada do ator na forma como ele apreende as regras sociais e na maneira como lida com elas. Todo este processo é desencadeado desde a infância na tentativa de adequar-se às expectativas alheias, a começar pela vontade de suprir as expectativas paternas e maternas, depois vêm as expectativas dos professores na Escola, depois, tenta-se adequar às expectativas da sociedade como um todo.
Nessa tentativa de suprir as expectativas alheias e adaptar-se a elas, pela necessidade que o ‘ator’ sente de segurança, de aceitação e de afeto, ele acaba por escolher os traços que lhe parecem melhores e mais aceitos naquele grupo ou meio de sua convivência e atuação. Desta forma, a parte da ‘personalidade’ do indivíduo que foi rejeitada porque o ‘ego’ se identificou unicamente com o papel exercido pela ‘persona’, vai compor a “sombra” que, como dito anteriormente, é o arquétipo que maior influência exerce sobre o ‘ego’, e que se desenvolve em oposição à “persona”.
Geralmente, se esconde das outras pessoas, do mundo e da própria consciência tudo aquilo que o indivíduo considera demoníaco em si próprio: ânsia de poder, impulsos violentos, ações moralmente reprováveis, sentimentos e idéias cruéis, e tudo aquilo que a sociedade e a cultura de seu tempo considerar inadequado, como exemplo, os sentimentos que possam gerar frustração, quais sejam, as fraquezas, impotência, solidão, medos, raivas, invejas, ciúmes, cobiça, ambição, desamparo, derrota, sofrimento, dentre outros mais.
A “sombra” no indivíduo não é totalmente maligna embora, assim a consideremos. Nela se esconde o que há de melhor e o que há de pior na criatura. Ela não é apenas o que se encontra no inconsciente da pessoa, mas, é também o que perturba seu desejo de tornar-se mais consciente perante a própria existência. A “sombra” não desaparece com orações ou quaisquer súplicas, nem se dilui com a vontade de se fazer o bem, pois, ela penetra na vida do indivíduo sempre mais, na medida em que se esteja alheio à sua existência.
Quando se tenta reprimir a “sombra” ou os conteúdos inconscientes, estes podem irromper-se de maneira destrutiva sob a forma de emoções negativas, assim, disto, o massacre dos Judeus em Auschwitz é considerado como um exemplo aterrorizador.
Jung classificava o conflito entre o ‘ego’ e a ‘sombra’ como sendo a “batalha pela libertação”, significando que, na luta para se alcançar a consciência, o ‘ego, representado pelo ‘herói’, trava sua batalha contra a ‘sombra’ representada pelo ‘dragão’. A dificuldade que se tem em lidar com o arquétipo da “sombra” está no fato de que se prefere preservar a imagem idealizada da ‘persona’ do ser ‘bonzinho’ ao invés de reconhecer-se as próprias deficiências, as mazelas e diabruras que no ser residem.
Visitando a Galleria degli Uffizi, no Palácio que abriga um dos mais antigos e famosos museus do mundo, no centro histórico de Florença na belíssima região da Toscana, deparei-me, no First Floor, east wing, Room 81, com a espetaculosa, magistral e terrível “Medusa” (1597) – Obra prima, de Michelangelo Merisi (1571-1610) vulgo, Caravaggio.
Ante aquela imagem da cabeça de mulher com os olhos esbugalhados, a boca aberta como se exprimisse um grito terrificante, no lugar dos cabelos, mil serpentes embaralhadas prontas ao ataque e no lugar do pescoço, filetes de sangue escorrendo como se pudessem dar um sopro de vida à imagem aterradora, assustei-me. Fiquei chocada, afinal, ali me encontrava para iluminar minh’ Alma com belas e esplendorosas Obras de Arte. Passei longo tempo analisando a pintura buscando entender que tipo de pensamento, de emoção, de dúvidas ou de medos, teriam levado Caravaggio a retratar aquele mitológico monstro ctônico ou telúrico que na mitologia grega, refere-se aos deuses ou espíritos do mundo subterrâneo em contraposição aos deuses do Olimpo.
Caravaggio foi um homem de gênio tempestuoso, dominado pelas ‘sombras’ que o atormentaram na conflituosa existência. Sua genialidade artística foi adjetivada de “tenebrista” porque seu estilo mesclava fundos negros com focos de luz intensa. Sua técnica de pintar era a do “claro-escuro”. Órfão muito cedo, enfrentou a miséria e viveu a época da Contra-Reforma Católica, período em que eram incentivadas as construções de novas Igrejas e os trabalhos para os artistas pintores eram fartos, contudo, chegou a vender nas ruas suas pinturas. Trabalhou para o Cardeal Del Monte, patrono da Escola de Pintores de Roma e, em troca de um aposento no “Palazzo” e uma pensão regular, pintou vários quadros de rapazes com traços femininos porque seu benfeitor, secretamente, apreciava jovens com tais características. Pródigo e brigão, dado a jogatinas, ao se recusar a pagar uma aposta perdida, brigou com o seu credor que não resistiu aos ferimentos. Pouco tempo depois, morreu aos 39 anos tão miseravelmente quanto viveu.
Descobri que embora desprovida de beleza aos meus olhos, a “Cabeça da Medusa” de Caravaggio, entre outras tantas significâncias e simbolismos psicanalíticos e feministas, representa, acima de tudo, a difícil negociação com os aspectos não iluminados da “sombra”, pois, para lidar com a “sombra”, o indivíduo necessita, primeiramente, considerar sua existência e aceitá-la. O segundo passo, seria investigar suas más intenções e as qualidades que existem agregadas a ela, após o que, poder-se-ia realizar com a ‘sombra’ as negociações por vezes longas e difíceis, mas, que levaria a criatura a uma condição plena de felicidade, pois, no dizer no Mestre Jung “uma pessoa não se ilumina simplesmente imaginando figuras de luz, mas, iluminando a (própria) escuridão”.
Assim também no cenário político, em sendo reconhecidas todas as mazelas e suas deploráveis consequências tanto no campo individual quanto no contexto da coletividade brasileira, quiçá, possamos redefinir o “espetáculo” ou, numa atitude desesperada e desesperançada, presentear os nossos atores da cena política com a “Cabeça da Medusa” como o fez o Cardeal Del Monte, Clérigo rico e sofisticado, que, ao admirar o quadro do “peintre maudit” decidiu-se por presenteá-lo a Ferdinando de Médici, Grão-Príncipe da Toscana.
Reza a lenda que todo aquele que olhar fixamente a Medusa com seus cabelos venenosos, será transformado por ela em pedra. O presente dos brasileiros aos atores da cena política que tanto apreciam a lavagem de dinheiro espúrio comprando obras de arte, deveria conter um cartão com a inscrição inspirada nas palavras de Gaspare Murtola em 1603: “Corre, pois, com seus olhos espantosamente desenhados, ela irá transformá-lo em pedra”.
Paz e bem! 17 de Junho de 2016.
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