ARMAS: POR QUE UNS DEFENDEM E OUTROS QUEREM PROIBIR (E POR QUE MUDAR DE IDÉIA)
Em seus dois discursos após o atentado terrorista islâmico em Orlando, Barack Obama primeiramente não usou as palavras “islâmico” ou “muçulmano”, nem mesmo iniciadas por “terrorismo”. Depois, apenas comentou en passant que seu foco não era o extremismo islâmico. Que a única forma de passar do discurso à ação contra o terrorismo era o controle de armas.
A crença no controle de armas pelo Estado é a menina dos olhos da ONU, da esquerda e de quase toda a intelligentsia ocidental. É tratada quase como uma verdade indiscutível, um fato da vida, como água congelar a 0° C.
É uma crença difundida sobretudo em países com pouca cultura guerreira, como o Brasil. Em países que já tiveram um histórico milenar de lutar contra inimigos externos, como os europeus, teve de ser imposta a mando através dos totalitarismos do século XX, o nazi-fascismo e o comunismo.
Uma análise menos apaixonada pode partir do grande, talvez único ponto de concordância entre esquerda e direita: ambas concordam que uma arma é um instrumento de poder. É o que diz a sociologia capitalista de Max Weber, definindo o Estado como o monopólio da violência, é o que está subscrito no materialismo histórico-dialético de Marx, com os meios de produção marcando a história. Foi o que fez os totalitarismos concentrarem as armas nas mãos do Estado, como notamos em Hannah Arendt ou no poder para crescer o próprio o poder do lorde Bertrand de Jouvenel, é o famoso apotegma do comunista Mao Zedong, “o poder vem do cano de uma espingarda”. O próprio símbolo do comunismo, a foice e o martelo, é o entrecruzamento de dois instrumentos que podem ser usados como arma: a ferramenta do camponês e a do operário. Moçambique, um país socialista, trocou o martelo em sua bandeira por um AK-47.
Com efeito, não existe linguagem mais universalmente aceita e entendida do que a boca de revólver apontada para a cabeça do interlocutor. Não há ideologia que resista a tal verdade. Quem tem armas tem poder.
Geralmente, não compreendemos de onde as nossas próprias visões de mundo surgiram, e só quando descobrimos sua gênese é que podemos nos horrorizar e trocar de posicionamento, fugindo do “debate” de acusação de rótulos típico da modernidade.
Mas antes de analisar visões de mundo dissonantes, ideologias e seus -ismos, crenças e suas pressuposições ocultas dos crentes, também é preciso analisar justamente seus instrumentos, a forma como pretendem passar de uma idéia para sua materialização. É onde as idéias se entortam: intenções, muitas vezes, mostram carregar conseqüências indesejáveis e inescapáveis, e o solo onde se planta as idéias nem sempre rende as mesmas árvores almejadas.
Os instrumentos de realização, portanto, podem contar tanto, ou até mais, do que a afoiteza das vontades. A melhor das ideologias no abstrato pode encontrar obstáculos de materialização e dos instrumentos necessários para sua consecução no concreto, fazendo com que aqueles que tinham uma idéia a respeito da política ou sociedade possam acabar, após uma boa antevisão ou muita tentativa e erro, mudando de idéia para o lado oposto. É por isto que as pessoas quase sempre mudam de idéias políticas numa única direção: do ardor revolucionário da juventude para uma dureza de princípios maior com a experiência.
Armas, afinal, são instrumentos. E instrumentos que dão poder. Em caso de discordância extrema, ou de alguma indecisão sobre o que fazer a respeito de algo, não é preciso muita demonstração para se mostrar que o sujeito armado da sala está em primeiro na fila de prioridade de obediência. Quem chegou armado não precisa pegar fila.
É uma das mais interessantes contribuições à ciência política que pode ser vista, por exemplo, no curso Política e Cultura no Brasil, de Olavo de Carvalho: ao invés de apenas observar o nome fantasia e a propaganda declarada das idéias políticas, é preciso analisar quais são seus meios de concretização.
Um dos clichês mais irrefletidamente repetidos a respeito das armas é que outros instrumentos servem para outras coisas, e também para matar, mas as armas só servem para matar. É um erro de desconhecimento do instrumento: a maior parte dos instrumentos serve para matar apenas em caso de uso, enquanto a arma, bem ao contrário, justamente pelo desenho de sua finalidade, costuma ser um excelente instrumento para ameaçar. É difícil ameaçar e exigir um comportamento de outra pessoa com uma caneta ou um martelo, que igualmente podem gerar ferimentos fatais. É com a ameaça de uso, e não com o uso, que a arma é instrumento de poder: não se obtém muito poder dos mortos. Dead men tell no tales.
ARMAS DE ESQUERDA, ARMAS DE DIREITA
E é aqui que surge uma diferença de pensamento entre, genericamente falando, direita e esquerda. Se concordam com o que vai acima, discordam do que fazer com tal poder, político ou não, devido a outras premissas.
A esquerda, defensora da igualdade, crê que seres humanos deveriam agir conforme um planejamento coletivo. Sem este plano único, cada um tomaria caminhos diferentes na vida, gerando desigualdade e dissenção. Um pensamento que tem como origem mitológica Procrustes, como origem moderna Thomas Hobbes, como grande ideólogo “científico” Karl Marx e como grande consubstanciação política a Revolução Francesa e a Revolução Russa, a visão de esquerda implica um poder concentrado para concretizar seus intentos. Por isso, “social” é seu adjetivo preferido.
Sem que o poder esteja completamente concentrado, novamente teremos desigualdade. Afinal, Homo homini lupu, “o homem é lobo do homem”. Uma liberdade de pensamento, expressão e ação média já pode gerar conflitos, portanto, tudo precisa ser regulado por uma força maior.
Se os cidadãos, porém, possuírem armas, tal força maior nunca será uma força maior de fato. Não há possibilidade de uniformização, homogeneização e mesmificação promovidas por um poder total, nem mesmo a própria construção do poder total, privando-se a liberdade individual em prol de um “bem maior” (e incrivelmente mais forte, ao qual não se pode obedecer), se qualquer um que resolva desobedecer o grande projeto possa ter os meios de desobediência. A idéia de um “contrato social” só poderia gerar mesmo a polícia política soviética caçando “contra-revolucionários” que não aceitem o pensamento único.
É esta visão de um planejamento social onipotente, onipresente e que tenta ser onisciente que está encoberto em muito do discurso político do Brasil, um país com uma tendência mais conservadora na população média, mas de educação hegemonicamente esquerdista. Tal educação nega a liberdade individual, como no caso marxista, ou presume que, se tal liberdade existe, deve ser coibida, como no hobbesianismo.
Todos os problemas são coletivos, todas as responsabilidades podem ser terceirizáveis, tudo será resolvido não com atitudes e valores que falem a uma consciência individual, mas com mais planejamento. É a crença de que a criminalidade se resolve com educação, que a violência é culpa do preconceito, que uma crise financeira só pode ser resolvida com mais intervenção estatal, que a inanição cultural só pode ser resolvida com aumento de“incentivos” supostamente “dados” pelo Estado.
Neste último exemplo, por sinal, lê-se nas entrelinhas os dois eixos de sustentação da esquerda contemporânea: professores pespegando o dogma de que eles próprios é que são a solução para tudo, e cada novo problema tem sempre como solução mais de sua doutrina, sempre denominada apenas “educação”, genericamente, sem explicar seu conteúdo. E também a idéia de “incentivos”: seres humanos, para eles, não agem por um diálogo interno entre suas consciências próprias e suas vontades, e sim apenas reagem a estímulos anteriores, como autômatos, como robôs, como marionetes. E cabe a eles puxarem os fios.
Alguém imbuído de tal visão de mundo pode pensar que as pessoas possam usar armas? Citando-se até mesmo o próprio marxista Walter Benjamin, não se trata apenas do medo de as pessoas se matarem como bobas por aí (o argumento padrão é afirmar que brigas de trânsito e entre vizinhos sempre terminam em morte caso alguém esteja armado, jurando que existem estatísticas para isso). O medo maior é que haverá um poder concorrente ao poder de planificação do grande Estado.
Se as pessoas apenas reagem, a única saída (e ainda considerada “justa”, “ética” e mesmo “libertadora”) é que apenas o Estado controle todas as armas. Sempre que um criminoso usar uma arma contra um cidadão desarmado, a falha não foi de duas consciências em conflito – foi de ainda maior falta de planejamento, exigindo-se ainda mais planejamento para lidar com ela: é preciso controlar ainda mais as armas, e não a vontade de matar.
Cada mostra de que as pessoas não agem de acordo com o grande Estado apenas provaria de que é preciso ainda mais Estado para controlar as pessoas, e seus instrumentos de ação. Qualquer poder individual não apenas causa falhas de planejamento: põe os próprios planos e os próprios planejadores em risco. A falha é sempre do plano geral de obediência, não de indivíduos.
Situação inversa ocorre na direita. Defensora da liberdade, é caudatária da idéia de que os homens agem desordenadamente, sem obedecer a um rito unificador. Por isso seu foco não é criar um padrão único de obediência coletiva, seja uma revolução ou uma ideologia comum imposta via Ministério da Educação – sua âncora é a consciência individual, o diálogo interior antes do exterior, a observância de princípios e de uma moral até superior a uma lei escrita.
Bem ao contrário da esquerda, tal pensamento não é traçado por um punhado de pensadores modernos, podendo ter sua origem rastreada até filósofos tão antigos e de quilate tão universal e sobre os tempos quanto Aristóteles ou Cícero. Sistematizada em reação às intenções “sociais” e ao furor por uma “correção” dos defeitos do poder com ainda mais poder na Revolução Francesa, seu desejo é por um poder diluído entre os cidadãos, sem que ninguém possa exercer um poder extremo sobre outros.
Seus principais documentos são a Carta Magna, limitando o poder do rei inglês, e a Constituição Americana, que muito mais proíbe o Estado de fazer diversas coisas do que tenta limitar o poder dos cidadãos. Essa Constituição, já em sua Segunda Emenda, proíbe o Estado de restringir o acesso dos cidadãos às armas.
Com o poder diluído entre cidadãos, não é possível criar, mesmo em situações de emergência, as condições e meios para se instaurar uma ditadura, ou mesmo um completo Estado de sítio em que toda a população fique refém de um poder maior.
Isto vale tanto para uma ação estatal quanto para uma privada. Ou seja: também uma gangue ou milícia fica impossibilitada de seqüestrar toda uma população com armas, se pessoas aleatórias dessa população puderem estar armadas.
Antes de pensar na política e no abstrato (o que vai de “o povo” até “indústria bélica” ou “a criminalidade”), basta pensar: você, se fosse uma pessoa má, entraria num vagão de metrô, sacaria sua submetralhadora Uzi carbine e gritaria: “Isso é um assalto, passem todo o dinheiro e celulares para cá!” se soubesse que uma pessoa no vagão pudesse, apenas pudesse estar tão bem armada quanto você?Novamente, não é apenas o uso da arma que conta, mas a possibilidade de uso. A mera idéia de que alguém possa estar armado faz qualquer assalto ou atentado terrorista ser adiado (e esta é uma “estatística” impossível de ser mensurada, mas instintivamente óbvia).
A tese de que as pessoas só agem conforme um planejamento central, é o próprio Walter Benjamin quem nos conta, tem o terrorismo, os assaltos, os assassinatos como falhas do poder que exigem mais poder. O medo de políticos que temem que os cidadãos tenham armas não é a respeito do que as pessoas se matem: é o de que as pessoas tenham poder sobre políticos.
CONTROLE DE ARMAS NÃO TEM A VER COM ARMAS. TEM A VER COM CONTROLE.
Ou, trazendo a discussão para ainda mais perto da realidade da discussão hodierna: será mais fácil fazer isso na Suíça, onde quase 10% da população anda armada livremente, até mesmo carregando rifles e armamento pesado, ou no Brasil, onde vigora o Estatuto do Desarmamento e a população não usa armas?
Aqui é que uma resposta ao impasse sobre as armas pode ter uma resposta também profundamente óbvia, se retirarmos as ideologias. A Suíça é um país que não tem um governo grande, é um paraíso fiscal, as pessoas pagam poucos impostos, a liberdade de expressão é sagrada, não há intervenção estatal na economia, não há um dirigismo unívoco para a população obedecer e, claro, a cultura de armas é gigantesca, da caça ao esporte. Adolf Hitler, que poderia ter atacado a Françaatravés dos Alpes suíços (lição que Sun Tzu já conhecia há 5 mil anos: atacar de maior altitude é sempre uma vantagem), desistiu ao lembrar que a Suíça nem precisa ter um exército de fato: sua própria população funciona como um. Encarou a França de frente e começou a perder a guerra.
É conhecida a anedota suíça que reza que o príncipe alemão Wilhelm Hohenzollern certa vez, quando em visita a Suíça, foi convidado a assistir um dos inúmeros treinamentos militares a que os cidadãos desse país são submetidos. A um dado momento perguntou ao comandante do exercício: “Quantos homens em armas você possui?” Foi-lhe respondido: “Um milhão”. O príncipe, posteriormente Kaiser da Alemanha, então indagou: “O que você faria se cinco milhões de meus soldados cruzassem sua fronteira amanhã?” Ao que o comandante suíço replicou: “Cada um de meus homens daria cinco tiros e iria para casa.”
É comum que as pessoas tirem a conclusão apressada de que as armas funcionam na Suíça porque é um país civilizado que segue regras, enquanto no Brasil gerariam o caos porque não seguimos regras. Fora a análise antropológica flertando perigosamente com o racismo, como se regras ou falta delas fossem algo congênito, genético, atávico ou ambiental, basta inverter o clichê para perceber a verdade: o povo suíço conseguiu alcançar a tradição de seguir leis justamente por ter um poder diluído e aquilo que o brasileiro menos acredita: no poder das armas, já que não é preciso ser muito genial para perceber que tentar sabotar a segurança das pessoas na Suíça não é algo propriamente fácil, enquanto no Brasil… oh, o Brasil.
Uma filosofia sobre os meios e instrumentos, e não só sobre intenções, mostraria ao brasileiro a verdade sobre armas. Basta, novamente, lembrar aquilo no qual esquerda e direita concordam: o poder vem do cano de uma arma.
Se quisermos que apenas os bandidos e terroristas tenham poder, geraremos o Brasil e os atentados terroristas islâmicos no Primeiro Mundo, que nunca (repetimos: nunca) são realizados diante de vítimas com o mínimo potencial de estarem armadas – que dirá tentar matar os “infiéis ocidentais”, cristãos, capitalistas, ateus, comedores de bacon e mulheres de biquini, num clube de caça, na NRA, num bar de rednecks no Texas. Locos si, pero no tontos.
A lição de Edmund Burke, o compilador moderno das idéias conservadoras, ainda não é compreendida no Brasil: para que o mal triunfe, basta que as pessoas de bem não façam nada. Afinal, não é uma proibição de acesso a um instrumento de poder a toda a população que fará com que os que não respeitam a proibição de matar pessoas não acessem o instrumento de poder. Pelo contrário: todo terrorista e todo assassino ama teses desarmamentistas.
Si vis pacem, para bellum.
FONTE: http://sensoincomum.org/2016/06/16/armas-por-que-uns-defendem-outros-querem-proibir/
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