Páginas

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Justiça discute competência de conselhos profissionais (CFP,CRM etc)

Posted: 07 May 2013 11:22 AM PDT


COMPETÊNCIA LIMITADA

Justiça discute competência de conselhos profissionais

Conselhos profissionais, na condição de autarquias de direito público, têm competência para proceder com sanções disciplinares contra seus filiados, mas devem observar que a regulamentação da profissão é matéria de reserva legal. O entendimento é pacificado no que toca a maioria das profissões, mas, no campo da saúde mental, na área da Psicologia clínica em particular, o tema tem chegado aos tribunais em virtude de dúvidas quanto ao limite da competência dos conselhos regionais de Psicologia (CRPs) para endossar ou rejeitar novos modelos de tratamento psicoterapêutico.

Por trás da discussão está a zona cinzenta da competência dos CRPs, ou a ausência desta, para avaliar a chamada “cientificidade” de novas práticas e abordagens clínicas. Em maio de 2012, o juiz federal Marcelo Krás Borges condenou o Conselho Regional de Psicologia da 12ª Região (Santa Catarina) a se retratar por ter submetido à censura uma piscóloga catarinense que trabalhava com a técnica conhecida como “psicologia transpessoal”. O CRP-12 teve de anular um procedimento ético em que denunciava a psicóloga por fazer uso, em sua prática profissional, de “técnicas não reconhecidas” pela Psicologia.

Em fevereiro deste ano, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região manteve a decisão monocrática em 1º grau, reconhecendo que a sanção imposta pelo conselho violou o artigo 206 e também o artigo 5º, inciso XIII, da Constiuição Federal, que dispõem sobre a liberdade de profissão e ensino.

O tema volta novamente à Justiça: desta vez, a Associação Brasileira de EMDR (uma forma de psicoterapia) moveu uma ação contra o Conselho Regional de Psicologia do Paraná, em razão da entidade ter notificado duas psicólogas filiadas e determinado posteriormente o impedimento de ambas de utilizarem, “atrelada ao seu título de psicóloga”, a prática chamada de EMDR.

O EMDR, sigla para o inglês Eye Movement Dessensitization and Reprocessing (Dessensibilização e Reprocessamento por meio dos Movimentos Oculares, em português), é um modelo de psicoterapia surgido nos Estados Unidos na segunda metade dos anos 1980 e voltado essencialmente para o tratamento de quadros de trauma psicológico. Utilizado em casos de transtorno de estresse pós-traumático, o EMDR é considerado uma técnica de natureza neurofisiológica que conjuga práticas terapêuticas com o estímulo bilateral dos hemisférios cerebrais, visando o reprocessamento de lembranças de estresse agudo.

A prática chegou ao Brasil há mais de dez anos e, de acordo com a Associação Brasileira de EMDR, mais de mil psicólogos foram treinados e certificados para usar o método, que é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde.

No entanto, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná determinou a  suspensão  de divulgações referentes à prática do EMDR via CRP-PR por entender que a prática “ainda carece de comprovações científicas de sua eficácia, e consequentemente os psicólogos ficam impedidos de utilizarem a técnica atrelada ao seu título de psicólogo”.

Em março, a Comissão de Orientação e Fiscalização do CRP paranaense convocou, para uma entrevista, as duas psicólogas filiadas que usam da técnica em sua prática clínica e divulgam o serviço por meio de um website. O motivo da entrevista era prestar esclarecimentos às psicólogas, orientá-las quanto ao uso do EMDR. Na ocasião, foi lembrado que o CRP-PR posicionou-se contrariamente ao uso do EMDR por entender que a prática carece de reconhecimento científico.

A entidade de classe evocou, para tanto, o Código de Ética do Psicólogo em seu artigo 1º, alínea "c", que dispõe sobre o “dever do psicólogo de prestar serviços psicológicos de qualidade, em condições de trabalho dignas e apropriadas à natureza desses serviços, utilizando princípios, conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional”.
O conselho determinou o prazo de 30 dias para que as terapeutas adequassem o site, a fim de desvincularem a prática de EMDR do trabalho como psicólogas.

Reserva legal“Sob o pretexto de disciplinar e fiscalizar, o CRP não pode decidir sobre as condições para o exercício regular da profissão. Isso é estabelecido por lei”, disse à revista Consultor Jurídico o advogadoRafael Amarante, que representa a associação brasileira de EMDR contra o CRP paranaense.

Na ação ajuizada na Justiça Federal do Paraná com pedido de antecipação de tutela, a associação pleiteia o reconhecimento da nulidade das exigências e proibições, “aplicadas de forma discricionária, sem a observância do devido processo legal”, de acordo com o texto da ação.

Sobre o entendimento de que o Código de Ética do Psicólogo ampara a intervenção da entidade de classe, o advogado observa  que “regramentos de inferior hierarquia” não podem violar o devido princípio de reserva legal.

“Na esteira desse entendimento jurisprudencial, resta incontroverso que o CRP-PR violou o princípio da reserva legal, exorbitando do seu poder regulamentar e usurpando a competência do legislador, ao impor exigências e proibições aos (às) psicólogos(as), no tocante ao exercício da prática de EMDR, mediante procedimento administrativo eivado de nulidade, por vício de motivo, vício de forma e cerceamento de defesa”, diz a ação.

O advogado pondera também que, por mais de dez anos, a prática nunca chegou a ser questionada pelo Conselho Federal de Psicologia ou por outros CRPs . A ação questiona ainda a ausência de comunicação prévia à associação de EMDR e a seus membros, permitindo, assim, que os responsáveis tomassem conhecimento do procedimento administrativo. O que ofende, segundo os demandantes, o direito ao contraditório e à ampla defesa.

“O conselho não pode fazer esse tipo de intervenção no exercício da profissão. Cabe interferir quando for constatada uma flagrante infração ética. E, ainda assim, devem fundamentar o ato e permitir que a parte apresente seus argumentos e exerça seu direito de defesa”, disse Amarante àConJur.
Para o advogado, o conselho profissional parte de uma “premissa equivocada”, de que falta comprovação científica ao método, uma vez que a técnica adota critérios científicos reconhecidos internacionalmente. “Veja-se que a associação coleciona notícias de pesquisas, artigos e experimentos, inclusive teses de doutorado, bem como mais de duzentas referências bibliográficas [...], a sua eficácia está respaldada por critérios científicos internacionalmente aceitos”, diz a ação.

A associação de EMDR argumenta ainda que, nos Estados Unidos, a técnica é recomendada pela Associação Psiquiátrica Americana (APA) e recebeu o selo de aprovação concedido pelo Departamento de Saúde do governo federal dos EUA, por meio do Registro Nacional de Práticas e Abordagens Baseadas em Evidências (NREPP, na sigla em inglês), distinção concedida apenas a técnicas que gozem de comprovado respaldo científico.

LegitimidadePara o professor de Direito e filosofia jurídica, o advogado constitucionalista João Antonio Wiegerinck, como os conselhos profissionais não são órgãos técnicos, cabem a estes, quando há dúvida em relação à legitimidade de um procedimento, solicitar pareceres de um corpo de peritos ou de um órgão técnico antes de procederem com sanções.

“No momento em que um conselho profissional da área da saúde começa a legislar ou a proibir o emprego de técnicas reconhecidas, já testadas ou aprovadas não temos um problema só de liberdade de profissão, mas de saúde pública”, diz Wiegerinck.

O advogado reitera a importância de entidades de classe, ao realizarem processos para apurar infrações éticas ou procederem com sanções administrativas, se aterem ao devido processo legal, sob o “risco de que se convertam em órgãos meramente políticos”. Para Wiegerinck, é preciso entender que ao conselho compete agir a partir da denúncia de prejuízo ou lesão, tendo em perspectiva o respeito ao paciente e a sua integridade.

Para o advogado constitucionalista Nestor Castilho Gomes, da Bornholdt Advogados, o fato de a regulamentação da profissão ser questão de reserva legal não significa que conselhos profissionais não possam proceder com sanções disciplinares, amparados, para tanto, em seus códigos de ética.
“A liberdade de exercício da profissão não pode abarcar qualquer prática. O profissional não está liberado para praticar qualquer coisa”, disse Gomes. “A atuação do conselho depende da previsão infraconstitucional, uma lei que estabeleça a competência do conselho profissional de vetar determinadas práticas. A lei que cria o conselho é que deve estabelecer essa competência para proceder com a intervenção. E essa intervenção deve ser constitucionalmente fundamentada e cientificamente comprovada”, observa. 

O constitucionalista lembra o caso do Conselho Federal de Medicina, que vetou o tratamento antienvelhecimento, por hormônios, por entender que faltava à técnica a devida comprovação científica. “Neste caso, a intervenção foi fundamentada, salientando o risco para outros bens jurídicos, como a saúde e a própria vida”, aponta.

Castilho Gomes observa ainda que os conselhos são competentes para realizar o acompanhamento técnico e ético do exercício da profissão, mas que intervenções não fundamentadas dão margem para ações anulatórias.

Filiação ideológicaOutra fonte de preocupações para os conselhos regionais de Psicologia é a adesão de psicólogos a ideologias, tradições religiosas e práticas alheias à Psicologia como ciência. Se por um lado, cabe a fiscalização com a finalidade de zelar pela prática da profissão dentro de critérios científicos, por outro, é direito do profissional se filiar a grupos e a linhas de pensamento com fins de estudo, lazer e divulgação de ideias.

“A Constituição assegura a liberdade de associação”, observa Nestor Castilho Gomes. “Na prática clínica, o profissonal deve usar técnicas reconhecidas e não pode, digamos, comprometer sua atuação com opções ideológicas.  Mas a filiação a ideologias ou a grupos é um direito fundamental.  Há, por exemplo, associações de juizes espíritas. Mas o juiz deve julgar de acordo com a lei e com a técnica e não com base na doutrina que professa”, exemplifica.

O assunto, que dá margem para um amplo debate, parece frustar tanto psicólogos como os responsáveis por acompanhar e fiscalizar o exercício da profissão. Abordagens tradicionais da Psicologia, como a psicanálise, por exemplo, não gozam exatamente de respaldo científico. Por outro lado, não há uma relação definitiva de abordagens permitidas e censuradas no campo da Psicologia no Brasil. Existe, inclusive, um rol de “técnicas alternativas” que o Conselho Federal de Psicologia, por meio de resoluções, dispõe sobre o uso. A Resolução CFP 005/2002, cuida, por exemplo, da prática da acupuntura por psicólogos. A Resolução CFP 13/2000 dispõe sobre a utilização da hipnose como “técnica auxiliar”.  

“O profissional tem direito de associar-se, de ter vínculos ideológicos. Do contrário, o que temos é 'patrulhismo'. Uma coisa é fiscalizar a atuação do psicólogo no consultório, outra é não permitir que ele se filie a grupos com quem compartilhe uma visão de mundo ou mesmo uma fé”, observa o advogado João Wiegerinck.

Até a publicação desta reportagem, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná não havia respondido a solicitação da ConJur para uma entrevista.

Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 25 de abril de 2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário