Introdução
O maior
problema do estado é que, tal qual um paciente de hospício, ele acredita
possuir superpoderes, podendo violar as regras da natureza como bem
entender. Dois exemplos bem conhecidos pelos liberais: ele considera ser
capaz de ler mentes de milhares de pessoas ao mesmo tempo com uma precisão incrível e ter uma superinteligência capaz de fazer milhões de cálculos econômicos por segundo. Um roteirista de história em quadrinhos não faria melhor.
O estado
brasileiro, no entanto, não está satisfeito com seus delírios atuais, e
pretende aumentar o espectro dos seus poderes sobrenaturais para dois
campos que a Física considera praticamente inalcançáveis. E parece estar
conseguindo: desde 26/05/2014, viagem no tempo e teletransporte
passaram a ser oferecidos de graça a todo e qualquer cidadão brasileiro.
Obviamente,
a tecnologia está nos seus primórdios e ainda tem suas limitações, de
tal modo que você, pretenso candidato a Marty McFly, pode escolher
apenas um destino para suas aventuras: a Rússia de abril de 1917. Em
compensação, prepare-se: graças ao estado brasileiro, você está prestes a
enfrentar a experiência soviética em todo o seu esplendor.
A “máquina do tempo” que nos leva de volta a 1917 tem um nome no mínimo inusitado: chama-se “Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014”. Aqui a denominaremos apenas de “Decreto 8.243”, ou “Decreto”.
Este
artigo se destina a investigar o seu funcionamento – ou, mais
especificamente, quais as modificações que esse decreto introduz na
administração pública. Também farei algumas breves considerações a
respeito da analogia que se pode fazer entre o modelo por ele instituído
e aquele que levou à instauração do socialismo na Rússia: trata-se, no
entanto, apenas de uma introdução ao tema, que, pela importância que
tem, com certeza ainda gerará discussões muito mais aprofundadas.
O Decreto 8.243/2014
Chamado por um editorial do Estadão de “um conjunto de barbaridades jurídicas” e por Reinaldo Azevedo de “a instalação da ditadura petista por decreto”,
o Decreto 8.243 foi editado pela Presidência da república em 23/05/14,
tendo sido publicado no Diário Oficial no dia 26 e entrado em vigor na
mesma data.
Entender
qual o real significado do Decreto exige ler pacientemente todo o seu
texto, tarefa relativamente ingrata. Como todo bom decreto
governamental, trata-se de um emaranhado de regras cuja formulação chega
a ser medonha de tão vaga, sendo complicado interpretá-lo
sistematicamente e de uma forma coerente. Tentarei, aqui, fazê-lo da
forma mais didática possível, sempre considerando que grande parte do
público leitor dessa página não é especialista na área jurídica (a
propósito: que sorte a de vocês.).
Iniciemos
do início, pois. Como o nome diz, trata-se de um “decreto”. “Decreto”,
no mundo jurídico, é o nome que se dá a uma ordem emanada de uma
autoridade – geralmente do Poder Executivo – que tem por objetivo dar
detalhes a respeito do cumprimento de uma lei. Um decreto se limita a
isso – detalhar uma lei já existente, ou, em latinório jurídico, ser “secundum legem”. Ao elaborá-lo, a autoridade não pode ir contra uma lei (“contra legem”) ou criar uma lei nova (“præter legem”).
Se isso ocorrer, o Poder Executivo estará legislando por conta própria,
o que é o exato conceito de “ditadura”. Ou seja: um decreto emitido em
contrariedade a uma lei já existente deve ser considerado um ato
ditatorial.
É exatamente esse o caso do Decreto 8.243. Logo no início, vemos que ele teria sido emitido com base no “art. 84, caput, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 3º, caput, inciso I, e no art. 17 da Lei nº 10.683”.
Traduzindo para o português, tratam-se de alguns artigos relacionados à
organização da administração pública, dentre os quais o mais importante
é o art. 84, VI da Constituição – o qual estabelece que o Presidente
pode emitir decretos sobre a “organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”.
Guarde
essa última frase. Como veremos adiante, o que o Decreto 8.243 faz, na
prática, é integrar à Administração Pública vários órgãos novos – às
vezes implícita, às vezes explicitamente –, algo que é
constitucionalmente vedado ao Presidente da República. Portanto, logo de
cara percebe-se que se trata de algo inconstitucional – o Executivo
está criando órgãos públicos mesmo sendo proibido a fazer tal coisa.
Os absurdos jurídicos, contudo, não param por aí.
A “sociedade civil”
Analisemos
o texto do Decreto, para entender quais exatamente as modificações que
ele introduz no sistema governamental brasileiro.
Em
princípio, e para quem não está acostumado com a linguagem de textos
legais, a coisa toda parece de uma inocência singular. Seu art. 1º
esclarece tratar-se de uma nova política pública, “a Política Nacional de Participação Social”, que possui “o
objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias
democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração
pública federal e a sociedade civil”. Ou seja: tratar-se-ia apenas de uma singela tentativa de aproximar a “administração pública federal” – leia-se, o estado – da “sociedade civil”.
O problema começa exatamente nesse ponto, ou seja, na expressão “sociedade civil”.
Quando usado em linguagem corrente, não se trata de um termo de
definição unívoca: prova disso é que sobre ele já se debruçaram inúmeros
pensadores desde o século XVIII. Tais variações não são o tema deste
artigo, mas, para quem se interessar, sugiro sobre o assunto a leitura deste texto de Roberto Campos, ainda atualíssimo.
Para o Decreto, contudo, “sociedade civil” tem um sentido bem determinado, exposto em seu art. 2º, I: dá-se esse nome aos “cidadãos, coletivos, movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”.
Muita atenção a esse ponto, que é de extrema importância. O Decreto tem um conceito preciso daquilo que é considerado como “sociedade civil”. Dela fazem parte não só o “cidadão” – eu e você, como pessoas físicas – mas também “coletivos, movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”.
Ou seja: todos aqueles que promovem manifestações, quebra-quebras,
passeatas, protestos, e saem por aí reivindicando terra, “direitos”
trabalhistas, passe livre, saúde e educação – MST, MTST, MPL, CUT, UNE,
sindicatos… Pior: há uma brecha que permite a participação de movimentos
“não institucionalizados” – conceito que, na prática, pode abranger absolutamente qualquer coisa.
Em resumo: “sociedade civil”,
para o Decreto, significa “movimentos sociais”. Aqueles mesmos que,
como todos sabemos, são controlados pelos partidos de esquerda – em
especial, pelo próprio PT. Não se enganem: a intenção do Decreto 8.243 é
justamente abrir espaço para a participação política de tais movimentos
e “coletivos”. O “cidadão” em nada é beneficiado – em primeiro lugar,
porque já tem e sempre teve direito de petição aos órgãos públicos (art.
5º, XXXIV, “a” da Constituição); em segundo lugar, porque o
Decreto não traz nenhuma disposição a respeito da sua “participação
popular” – aliás, a palavra “cidadão” nem é citada no restante do texto,
excetuando-se um princípio extremamente genérico no art. 3º.
Podemos, então, reescrever o texto do art. 1º usando a própria definição legal: o Decreto, na verdade, tem “o
objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias
democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração
pública federal e os movimentos sociais”.
Compreender o significado de “sociedade civil”
no contexto do Decreto é essencial para se interpretar o resto do seu
texto. Basta notar que a expressão é repetida 24 (vinte e quatro!) vezes
ao longo do restante do texto, que se destina a detalhar os
instrumentos a serem utilizados na tal “Política Nacional de Participação Social”.
“Mecanismos de participação social”
Ok, então:
há uma política que visa a aproximar estado e “movimentos sociais”. Mas
no que exatamente ela consiste? Para responder a essa questão,
comecemos pelo art. 5º, segundo o qual “os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas”.
Traduzindo o juridiquês: a partir de agora, todos os “os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta”
(ou seja, tudo o que se relaciona com o governo federal: gabinete da
Presidência, ministérios, universidades públicas…) deverão formular seus
programas em atenção ao que os tais “mecanismos de participação social”
demandarem. Na prática, o Decreto obriga órgãos da administração direta
e indireta a ter a participação desses “mecanismos”. Uma decisão de
qualquer um deles só se torna legítima quando houver essa consulta – do
contrário, será juridicamente inválida. E, como informam os parágrafos
do art. 5º, essa participação deverá ser constantemente controlada, a
partir de “relatórios” e “avaliações”.
Os
“mecanismos de participação social” são apresentados no art. 2º e no
art. 6º, que fornecem uma lista com nove exemplos: conselhos e comissões
de políticas públicas, conferências nacionais, ouvidorias federais,
mesas de diálogo, fóruns interconselhos, audiências e consultas públicas
e “ambientes virtuais de participação social” (pelo visto, nossos
amigos da MAV-PT acabam de ganhar mais uma função…).
A rigor,
todas essas figuras não representam nada de novo, pois já existem no
direito brasileiro. Para ficar em alguns exemplos: “audiências públicas”
são realizadas a todo momento, a expressão “conferência nacional”
retorna 2.500.000 hits no Google e há vários exemplos já operantes de “conselhos de políticas públicas”, como informa este breve relatório da Câmara dos Deputados sobre o tema. Qual seria o problema, então?
A questão
está, novamente, nos detalhes. Grande parte do restante do Decreto –
mais especificamente, os arts. 10 a 18 – destinam-se a dar diretrizes,
até hoje inexistentes (ao menos de uma forma sistemática), a respeito do
funcionamento desses órgãos de participação. E nessas diretrizes mora o
grande problema. Uma rápida leitura dos artigos que acabei de mencionar
revela que várias delas estão impregnadas de mecanismos que, na
prática, têm o objetivo de inserir os “movimentos sociais” a que me
referi acima na máquina administrativa brasileira.
Vamos dar um exemplo, analisando o art. 10, que disciplina os “conselhos de políticas públicas”.
Em seus incisos, estão presentes várias disposições que condicionam sua
atividade à da “sociedade civil” – leia-se, aos “movimentos sociais”,
como demonstrado acima. Por exemplo: o inciso I determina que os
representantes de tais conselhos devem ser “eleitos ou indicados pela sociedade civil”, o inciso II, que suas atribuições serão definidas “com consulta prévia à sociedade civil”. E assim por diante. Essas brechas estão espalhadas ao longo do texto do Decreto, e, na prática, permitem que “coletivos, movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações” imiscuam-se na própria Administração Pública.
O art. 19, por sua vez, cria um órgão administrativo novo (lembram do que falei sobre a inconstitucionalidade, lá em cima?): “a Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais, instância colegiada interministerial responsável pela coordenação e encaminhamento de pautas dos movimentos sociais e pelo monitoramento de suas respostas”. Ou seja: uma bancada pública feita sob medida para atender “pautas dos movimentos sociais”,
feito balcão de padaria. Para quem duvidava das reais intenções do
Decreto, está aí uma prova: esse artigo sequer tem o pudor de mencionar a
“sociedade civil”. Aqui já é MST, MPL e similares mesmo, sem
intermediários.
Enfim, para resumir tudo o que foi dito até aqui: com o Decreto 8.243, (i) os “movimentos sociais” passam a controlar determinados “mecanismos de participação social”; (ii) toda a Administração Pública passa a ser obrigada a considerar tais “mecanismos” na formulação de suas políticas. Isto é: o MST passa a dever
ser ouvido na formulação de políticas agrárias; o MPL, na de
transporte; aquele sindicato que tinge a cidade de vermelho de quando em
quando passa a opinar sobre leis trabalhistas. “Coletivos, movimentos sociais, suas redes e suas organizações” se inserem no sistema político, tornando-se órgãos de consulta: na prática, uma extensão do Legislativo.
“Back in the U.S.S.R.”!
Esse
sistema de “poder paralelo” não é inédito na História – e entender as
experiências pretéritas é uma excelente maneira de se compreender o que
significam as atuais. É isso que, como antecipei no início do texto, nos
leva de volta a 1917 e aos “sovietes” da Revolução Russa, possivelmente
o exemplo mais conhecido e óbvio desse tipo de organização. Se é
verdade que “aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”,
como diz o clássico aforismo de George Santayana, é essencial voltar os
olhos para o passado e entender o que de fato se passou quando um
modelo de organização social idêntico ao instituído pelo Decreto 8.243
foi adotado.
Essa
análise nos leva ao momento imediatamente posterior à Revolução de
Fevereiro, que derrubou Nicolau II. O clima de anarquia gerado após a
abdicação do czar levou à formação de um Governo Provisório inicialmente
desorganizado e pouco coeso, incapaz de governar qualquer coisa que
fosse.
Paralelamente,
formou-se na capital russa (Petrogrado) um conselho de trabalhadores –
na verdade, uma repetição de experiências históricas anteriores
similares, que na Rússia remontavam já à Revolução de 1905. Tal conselho
– o Soviete de Petrogrado – consistia de “deputados” escolhidos
aleatoriamente nas fábricas e quarteis. Em 15 dias de existência, o
soviete conseguiu reunir mais de três mil membros, cujas sessões eram
realizadas de forma caótica – na realidade, as decisões eram tomadas
pelo seu comitê executivo, conhecido como Ispolkom. Nada diferente de um MST, por exemplo.
A ampla
influência que o Soviete possuía sobre os trabalhadores fez com que os
representantes do Governo Provisório se reunissem com seus
representantes (1º-2 de março de 1917) em busca de apoio à formação de
um novo gabinete. Isto é: o Governo Provisório foi buscar sua
legitimação junto aos sovietes, ciente de que, sem esse apoio, jamais
conseguiria firmar qualquer autoridade que fosse junto aos trabalhadores
industriais e soldados. O resultado dessas negociações foi o surgimento
de um regime de “poder dual” (dvoevlastie), que imperaria na
Rússia de março/1917 até a Revolução de Outubro: nesse sistema, embora o
Governo Provisório ocupasse o poder nominal, este na prática não
passava de uma permissão dos sovietes, que detinham a influência
majoritária sobre setores fundamentais da população russa. A Revolução
de Outubro, que consolidou o socialismo no país, foi simplesmente a
passagem de “todo o poder aos sovietes!” (“vsia vlast’ sovetam!”) – um poder que, na prática, eles já detinham.
Antes
mesmo do Decreto 8.243, o modelo soviético já antecipava de forma clara o
fenômeno dos “movimentos sociais” que ocorre no Brasil atualmente. Com o
Decreto, a similaridade entre os modelos apenas se intensificou.
Em
primeiro lugar, e embora tais movimentos clamem ser a representação do
“povo”, dos “trabalhadores”, do “proletariado” ou de qualquer outra
expressão genérica, suas decisões são tomadas, na realidade, por poucos
membros – exatamente como no Ispolkom soviético, a deliberação
parte de um corpo diretor organizado e a aclamação é buscada em um
segundo momento, como forma de legitimação. Qualquer assembleia de
movimentos de esquerda em universidades é capaz de comprovar isso.
Além
disso, a institucionalização de conselhos pelo Decreto 8.243 leva à
ascensão política instantânea de “revolucionários profissionais” –
pessoas que dedicam suas vidas inteiras à atividade partidária, em uma
tática já antecipada por Lênin em seu panfleto “Que Fazer?”,
de 1902 (capítulo 4c). Explico melhor. Vamos supor por um momento que o
Decreto seja um texto bem intencionado, que de fato pretenda “inserir a
sociedade civil” dentro de decisões políticas (como, aliás, afirma o
diretor de Participação Social da Presidência da República neste artigo d’O
Globo). Ora, quem exatamente teria tempo para participar de
“conselhos”, “comissões”, “conferências” e “audiências”? Obviamente, não
o cidadão comum, que gasta seu dia trabalhando, levando seus filhos
para a escola e saindo com os amigos. Tempo é um fator escasso, e a
maioria das pessoas simplesmente não possui horas de sobra para
participar ativamente de decisões políticas – é exatamente por isso que
representantes são eleitos para essas situações. Quem são as exceções?
Não é difícil saber. Basta passar em qualquer sindicato ou diretório
acadêmico: ele estará cheio de “revolucionários profissionais”, cuja
atividade política extraoficial acabou de ser legitimada por decreto
presidencial.
A questão foi bem resumida por Reinaldo Azevedo, no texto que citei no início deste artigo. Diz o articulista: “isso
que a presidente está chamando de ‘sistema de participação’ é, na
verdade, um sistema de tutela. Parte do princípio antidemocrático de que
aqueles que participam dos ditos movimentos sociais são mais cidadãos
do que os que não participam. Criam-se, com esse texto, duas categorias
de brasileiros: os que têm direito de participar da vida púbica [sic] e
os que não têm. Alguém dirá: ‘Ora, basta integrar um movimento social’.
Mas isso implicará, necessariamente, ter de se vincular a um partido
político”.
Exatamente
por esses motivos, tal forma de organização confere a extremistas de
esquerda possibilidades de participação política muito mais amplas do
que eles teriam em uma lógica democrática “verdadeira” – na qual ela
seria reduzida a praticamente zero. Basta ver que o Partido Bolchevique,
que viria a ocupar o poder na Rússia em outubro de 1917, era uma força
política praticamente irrelevante dentro do país: sua subida ao poder se
deve, em grande parte, à influência que exercia sobre os demais
partidos socialistas (mencheviques e socialistas-revolucionários) dentro
do sistema dos sovietes. Algo análogo ocorre no Brasil atual: salvo
exceções pontuais, PSOL, PSTU et caterva apresentam resultados
pífios nas eleições, mas por meio da ação de “movimentos sociais”
conseguem inserir as suas pautas na discussão política. As manifestações
pelo “passe livre” – uma reivindicação extremamente minoritária, mas
que após um quebra-quebra nacional ocupou grande parte da discussão
política em junho/julho de 2013 – são um exemplo evidente disso.
O sistema
introduzido pelo Decreto 8,243 apenas incentiva esse tipo de ação. O
Legislativo “oficial” – aquele que contém representantes da sociedade
eleitos voto a voto, representando proporcionalmente diversos setores –
perde, de uma hora para outra, grande parte de seu poder. Decisões
estatais só passam a valer quando legitimadas por órgãos paralelos, para
os quais ninguém votou ou deu sua palavra de aprovação – e cujo único
“mérito” é o fato de estarem alinhados com a ideologia do partido que
ocupa o Executivo.
Pior: a
administração pública é engessada, estagnada. Não no sentido definido no
artigo d’O Globo que linkei acima (demora na tomada de decisões), mas
em outro: os cargos decisórios desse “poder Legislativo paralelo” passam
a ser ocupados sempre pelas mesmas pessoas. Suponhamos, em um esforço
muito grande de imaginação, que o PT perca as eleições presidenciais de
2018 e seja substituído por, digamos, Levy Fidelix e sua turma. Com a
reforma promovida pelo Decreto 8.243 e a ocupação de espaços de
deliberação por órgãos não eletivos, seria impossível ao novo presidente
implantar suas políticas aerotrênicas: toda decisão administrativa que
ele viesse a tomar teria que, obrigatoriamente, passar pelo crivo de
conselhos, comissões e conferências que não são eleitos por ninguém, não
renovam seus quadros periodicamente e não têm transparência alguma. Ou
seja: ainda que o titular do governo venha a mudar, esses órgãos (e,
mais importante, os indivíduos a eles relacionados) permanecem dentro da
máquina administrativa ad eternum, consolidando cada vez mais seu poder.
Conclusão
O Decreto
8.243 é, possivelmente, o passo mais ousado já tomado pelo PT na
consecução do “socialismo democrático” – aquele sistema no qual você
está autorizado a expressar a opinião que quiser, desde que alinhada com
o marxismo. Sua real intenção é criar um “lado B” do Legislativo, não
só deslegitimando as instituições já existentes como também criando um
meio de “acesso facilitado” de movimentos sociais à política.
Boa parte
dos leitores dessa página podem estar se perguntando: “e daí?”. Afinal,
sabemos que a democracia representativa é um sistema imperfeito: suas
falhas já foram expostas por um número enorme de autores, de Tocqueville
a Hans-Hermann Hoppe. É verdade.
No
entanto, a democracia representativa ainda é “menos pior” do que a
alternativa que se propõe. Um sistema onde setores opostos da sociedade
se digladiam em uma arena política, embora tenda necessariamente a
favorecimentos, corrupção e má aplicação de recursos, ainda possui certo
“controle” interno: leis e decisões administrativas que favoreçam
demais a determinados grupos ou restrinjam demasiadamente os direitos de
outros em geral tendem a ser rechaçadas. Isso de forma alguma ocorre em
um sistema onde decisões oficiais são tomadas e “supervisionadas” por
órgãos cujo único compromisso é o ideológico, como o que o Decreto 8.243
tenta implementar.
Esse segundo caso, na verdade, nada mais é do que uma pisada funda no acelerador na autoestrada para a servidão.